Em termos legais, o espaço viário pertence aos entes federados e, por isso, é encarado como de natureza pública. Todavia, de acordo com a teoria econômica, os diversos bens produzidos pela sociedade apresentam características distintas.
Para alguns tipos de bens, a oferta pelo mercado é mais fácil. Já para outros a comercialização por agentes privados é difícil ou até mesmo inviável, o que torna necessária sua oferta pelo poder público. O quadro abaixo apresenta de forma sintética essas características e as quatro combinações existentes entre elas.
O conceito de exclusão diz respeito àquelas situações em que as pessoas podem ser impedidas de usar um bem, geralmente cobrando pelo acesso a um serviço ou produto. É o básico do mercado, em que você paga pelo que recebe e, se não, não recebe. A venda de um carro se encaixa neste caso, pois o comprador paga pelo produto e adquire a propriedade do automóvel, o que possibilita excluir o uso por terceiros, bastando não emprestar as chaves.
Já a rivalidade é quando o consumo de um bem reduz ou impede que terceiros consumam o mesmo bem ou serviço. Quem compra um carro tem a exclusividade da posse (exclusão) e o ato de dirigir determinado veículo só é possível de ser realizado por uma pessoa de cada vez (rivalidade). Da mesma forma, refeições, barbeiro ou manicure são consumidos individualmente.
Portanto, as características de exclusão e rivalidade são as mais apropriadas para serem ofertadas pelo mercado e estão representadas no quadrante 1 da tabela. Sendo conhecidas pela economia mais convencional como bens privados puros.
Claro que isso não inviabiliza ou torna desejável que todo produto/serviço com essas características seja ofertado apenas pelo mercado. Um exemplo trivial são as vacinas, um bem com características de exclusão (pois pode ser impedido o acesso através da venda) e rivalidade (somente uma pessoa recebe a dose da vacina), mas que, quando ofertados de forma gratuita, oferecem benefícios enormes para toda população.
Já no extremo oposto, representados no quadrante 4 da tabela, situam-se os bens inteiramente públicos. A oferta deles por entes privados é muito difícil ou inviável, pois suas características impedem a cobrança de preços de mercado.
Por exemplo, não há como impedir as pessoas de utilizarem da iluminação pública numa praça (não excludente) e várias pessoas conseguem desfrutar dela simultaneamente, sem nenhuma diminuição de sua disponibilidade (não rival).
Por isso, a tentativa de cobrar por este serviço pode ser infrutífera, já que os beneficiários não precisam manifestar o seu real interesse por ele nem quanto estariam dispostos a pagar. Nesses casos, fica mais fácil “pegar carona” no pagamento realizado por terceiros, não participando da repartição dos custos.
Os bens 2 e 3 são intermediários entre públicos e privados “puros”. A distribuição gratuita de vacinas contra a Covid é exemplo de bens do tipo 2, já que o acesso é não excludente, mas cada dose da vacina é dada em um braço (rivalidade). Por sua vez, comprar ingressos para ir ao cinema é exemplo do tipo 3, pois várias pessoas podem consumir simultaneamente a obra artística (não rival), mas devem pagar para acessar o produto (excludente).
Desta forma, a partir desses conceitos, é interessante observar em quais quadrantes podem se situar os diversos tipos de espaços públicos destinados aos automóveis:
Observa-se que no mundo de hoje são muito raros os casos em que as vias urbanas de fato se caracterizam como do tipo público puro. O espaço viário, tal qual se conformou na maioria das cidades brasileiras, tende a ser excludente, senão em termos legais, mas geralmente em termos econômicos e práticos.
É comum definir o bem como excludente somente quando existe cobrança direta pelo uso. Assim, para quem deseja trafegar pelas vias é possível cobrar pedágio, o que exclui todos aqueles que, mesmo tendo automóveis, não estejam dispostos a pagar o preço estipulado.
Já para quem deseja estacionar na via pública, é possível que o poder público estabeleça o chamado estacionamento faixa azul, o que restringe o direito de utilização do espaço àqueles que se disponham a pagar para depositar seus veículos nelas.
Neste sentido, afora estes casos, muitos são levados a conceituar ruas, avenidas e rodovias não pedagiadas como não-excludentes, já que ninguém estaria impedido de utilizá-las.
Todavia, devido à alta velocidade praticada na maioria das vias, bem como à inexistência de proteção a modos de transporte em situação mais frágil, os veículos motorizados acabam impondo barreiras a outros modos de transporte, excluindo quem opta pela mobilidade ativa (bicicleta, skate, patinetes).
Em certas situações, as barreiras a outros modos de transporte chegam a ser estabelecidas legalmente ou judicialmente, como na proibição de ciclistas descerem para a baixada santista.
No mesmo sentido, as vagas públicas mesmo que sem cobrança de faixa azul também podem ser conceituadas como excludentes, já que quem deseja aproveitar o local para se sentar, descansar ou conversar deve dar espaço para o depósito de bens particulares motorizados.
Muitas vezes, a exclusão é estabelecida até mesmo pelos códigos de postura das cidades, já que caso alguém queira depositar bens particulares não motorizados no local, como um sofá, por exemplo, geralmente encontrará algum tipo de proibição.
Assim, na medida em que se privilegia o acesso às vias e estacionamentos pelo modal automotivo, a exclusão também se torna econômica, pois a compra deste bem funciona como condição necessária para desfrutar da infraestrutura viária.
No Brasil, conforme relatório da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), apenas 26% dos deslocamentos diários se dão por automóveis e 4% por motos, demonstrando que são bens ainda pouco acessíveis.
A grande maioria se desloca a pé (39%) ou por transporte coletivo (28%), sendo que neste último caso, a caminhada também costuma preencher parte do trajeto. Por conta disso é apropriado conceituar como excludentes as vias em que existem barreiras efetivas a outros modos de transporte, assim como as vagas públicas restritas a automóveis.
A rivalidade é outra característica muito presente no trânsito das grandes e médias cidades brasileiras. Ela acontece quando ocorre sobrecarga no uso da rua, situação em que ocorrem os chamados congestionamentos, o que acaba por inviabilizar a fluidez do tráfego.
É claro que este é um conceito relativo, não existindo parâmetros bem definidos de quando a capacidade da via se esgota. Cada automóvel que se acrescenta em determinado espaço acaba por interferir de forma negativa na qualidade de utilização para todos os outros, o que progressivamente transforma o uso da rua de não rival para rival.
Desta forma, as situações retratadas nos quadrantes 1 e 2, onde existem congestionamentos, são casos em que a utilização da via por cada um rivaliza com os demais e dificulta o seu uso da forma desejável. Já o uso do espaço público para estacionamentos, além de excludente por privilegiar os carros, pode ser rival, se a demanda por vagas for maior que a oferta.
Por fim, de acordo com a conceituação aqui estabelecida, o espaço viário somente será um bem público puro se, além de não sofrer sobrecarga de uso, adotar medidas que garantam o acesso a todos, ou seja, inclua efetivamente modos motorizados e não motorizados. Isso pode ser feito através de diferentes formas de intervenção urbana, visando a moderação do tráfego e permitindo que as vagas de estacionamento sejam destinadas a outros fins.
Diversas iniciativas realizadas ao redor do mundo vêm tentando mostrar que as vagas de estacionamentos podem ser ocupadas de outras formas. Em Portugal, para refrescar as altas temperaturas do verão europeu, piscinas foram colocadasno lugar de vagas públicas.
No Brasil, durante os eventos da semana da mobilidade, é comum ocorrerem as chamadas ações pela vaga viva, que ocupam o espaço destinado aos automóveis com pessoas, cadeiras, flores, grama, instrumentos musicais, livros, etc…
Outra possibilidade é a instalação de parklets, os quais transformam o espaço antes destinado a um bem inanimado em local de encontro acessível a todos.
Por sua vez, para que ruas e avenidas de grandes e médias cidades voltem a ser verdadeiramente públicas, é imprescindível adotar medidas para redução da velocidade das ruas, como as chamadas zonas 30. Estas alcançam maior efetividade quando se pratica o redesenho das vias e a instalação de mobiliário urbano, visando funcionar como obstáculo aos veículos motorizados, de forma que seja impraticável que estes desenvolvam grande velocidade.
Políticas mais avançadas podem chegar à construção de ruas compartilhadas,onde a impossibilidade de os veículos automotores praticarem alta velocidade permite não haver mais segregação entre o espaço da calçada e das ruas, nivelando os pavimentos. Isso possibilita que pedestres e ciclistas se sintam mais confortáveis para compartilhar a via, fomentando os espaços de convívio e retomando a vida urbana.
O ápice do sucesso dessas políticas ocorre quando as crianças (e seus pais) passam a perceber as ruas como sendo um direito delas, onde jogar bola ou pular amarelinha voltam a compor a paisagem, resgatando o espaço que os automóveis lhes roubaram e fazendo das ruas um bem não excludente e efetivamente público.
Via Caos Planejado.